A maioria da Suprema Corte exerceu um injustificável ativismo judicial, tão ao gosto, de alguns de seus integrantes, que chegam a falar, até mesmo, em “bom ativismo judicial”.

1. Era comum, no início de minha formação jurídica, a consulta às revistas jurídicas para encontrar comentários doutrinários sobre decisões do Supremo Tribunal Federal e de outros tribunais do país. Assim, encontrávamos comentários de excelentes juristas, podendo citar de memória alguns deles: Vicente Ráo, Noé Azevedo, Bilac Pinto, Victor Nunes Leal, Alcino Pinto Falcão, Aliomar Baleeiro, Afonso Arinos, Sady Cardoso de Gusmão entre tantos outros.

Atrevo-me, assim, a tecer alguns comentários sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal, envolvendo a ADPF 378 e tendente a rever, em última análise, dispositivos da Constituição Federal e da lei 1.079, do ano de 1950, sobre o instituto constitucional do impeachment1.

Depois do exaustivo, fundamentado voto do honrado ministro Luiz Edson Fachin proferido no plenário da Suprema Corte, destacando importantes princípios que regem o nosso Estado Democrático de Direito e sinalizando a impossibilidade do Poder Judiciário adentrar a esfera própria e indelegável do Poder Legislativo, em respeito ao princípio da divisão e harmonia dos Poderes da República, surge a divergência instaurada no voto proferido pelo ministro Luís Roberto Barroso.

A partir da divergência, passaram a ser colhidos os votos dos demais ministros, quando então três temas fundamentais passaram a ser tratados em contrariedade ao entendimento aberto no voto do ministro relator.

Entendo que esses três temas são importantes para os comentários que tenho a ousadia de levar à apreciação da comunidade jurídica isenta de ideologias que possam empanar a visão de um instituto constitucional tão caro às verdadeiras democracias ocidentais, qual seja o impeachment.

2. Inicio por ressaltar as gravíssimas e sérias advertências feitas no voto proferido pelo eminente e um dos mais antigos e brilhantes ministros do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. Sua Excelência, depois de dar a sua adesão integral aos votos dos ministros Fachin e Toffoli, advertiu:

“Assumamos que nós estamos fazendo uma manipulação do processo, para efeito “ad hoc” (para isto, para este fim específico), para interferir no processo. Vamos dar a cara a tapa, vamos assumir que estamos fazendo isso, com endereço certo. Estamos tomando uma decisão casuística.”

No acompanhamento feito pela televisão, verifiquei que nenhum ministro se manifestou sobre as graves advertências feitas. O silêncio foi absoluto e doído para aqueles que amam o “são Direito”, na feliz expressão do inesquecível Professor Vicente Ráo.

3. Pois bem, um dos tópicos mais emblemáticos foi aquele em que o Supremo reescreveu o comando contido no art. 86 da Constituição Federal, que dispõe: “Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será este submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade”. Norma constitucional clara, objetiva e que não exige maiores arroubos de hermenêutica. Todavia, para a maioria formada na Suprema Corte, onde está escrito “acusação”, leia-se simples “autorização”. Quer dizer o sufrágio exigido de dois terços da Câmara dos Deputados para admitir a acusação não vale, absolutamente, nada, pois pelo rito imposto, tudo recomeça no Senado Federal e uma deliberação por maioria simples, os senhores senadores poderão arquivar o impeachment.

4. A Lógica ensina há séculos, e continua a ensinar, que todo raciocínio impõe coerência na busca da verdade formal e dentro desse processo mental, se deve refugar, sempre, o absurdo. Enfim, se por força de uma interpretação da norma jurídica, se chega ao absurdo, tal interpretação deve ser abandonada por completo, porquanto não se pode supor, como diz Rui Barbosa, “que a lei ordinária, quanto mais a lei constitucional, caduque e delire”.2 E mais seguro está o entendimento, ora salientado, com a oportuna, verdadeira e indiscutível observação feita pelo ilustre ministro Dias Toffoli em seu fundamentado voto, quando observa que a Câmara dos Deputados encarna a soberania popular, enquanto o Senado representa os Estados da Federação.3 Logo, se o Presidente da República não conseguir 171 votos de um total de 513 deputados, para impedir o impeachment, encontra-se politicamente morto.

5. Pois bem, ao decidir, como decidiu, a maioria da Suprema Corte exerceu um injustificável ativismo judicial, tão ao gosto, de alguns de seus integrantes, que chegam a falar, até mesmo, em “bom ativismo judicial”. Ativismo judicial é ativismo judicial, não importa seja adotado em boa ou má causa, pois não cabe ao Poder Judiciário assumir o papel do legislador ou do constituinte, para substituí-los.

Ativismo judicial este que o professor Ives Gandra da Silva Martins, constitucionalista emérito, observa tratar-se de crescente atuação dos ministros do Supremo Tribunal Federal, “como legisladores e constituintes, não como julgadores” e à luz “da denominada “interpretação conforme”, estão conformando a Constituição Federal à sua imagem e semelhança, e não àquela que o povo desenhou por meio de seus representantes”.4 Para muitos ministros do Supremo Tribunal Federal, não vale a advertência feita pelo eminente professor Jorge Miranda, catedrático da Universidade de Lisboa e constitucionalista emérito, de que temos de levar em conta a Constituição que temos e não aquela que desejaríamos ter.

Se a Constituição não contém palavras inúteis, alterar a dicção contida no art. 86 da Constituição, substituindo o termo “acusação” para simples ”autorização” a sofrer aceitação ou não por parte do Senado Federal, até mesmo sob os critérios de conveniência e oportunidade, é ou não é, puro ativismo Judicial?

Aliás, Francisco Campos ponderava que “as normas constantes da Constituição têm por si, ou só pelo efeito de constarem da Constituição, a presunção de essencialidade, incondicionalidade e inderrogabilidade”, pois “o interesse público que inspirou a norma constitucional se presume em todos os casos e em qualquer espécie.”5 Em suma, a Constituição deve ser interpretada “de maneira a favorecer a atuação dos seus princípios e facilitar os fins que teve em vista atingir com o seu estabelecimento”.

6. Basta simples exame de outros dispositivos da Constituição Federal sobre o tema, como o fez o ilustre ministro Dias Toffoli em seu voto, para intuir a vontade do legislador constituinte.

Com efeito, o art. 51, I, da CF firma a competência privativa da Câmara dos Deputados para “autorizar por dois terços de seus membros a instauração de processo contra o Presidente e Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado”. Logo, o processo se instaura, exatamente, no momento em que o plenário da Câmara, por dois terços de seus membros, admite a acusação.

Em seguida, o art. 52, I, da CF prevê competência privativa do Senado Federal para “processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente nos crimes de responsabilidade (…)”. Quer dizer, cabe ao Senado Federal dar continuidade ao processo, já instaurado na Câmara dos Deputados e julgar o presidente da República.

Com razão acentua o professor Ives Gandra da Silva Martins, que o impeachment possui dois momentos distintos, um na Câmara e outro no Senado Federal. Em continuação, observa que “a Constituição em dois momentos faz menção à abertura de processos, uma na Câmara dos Deputados (art. 51, inciso I) e outra no Senado Federal (art. 86, § 4º, inciso II), em clara demonstração da existência de um processo de apuração e outro de julgamento”.6

Em suma, o impeachment tem início na Câmara e “chegando ao Senado nos crimes de responsabilidade, este deverá nos termos do artigo 86, § 1º, inciso II, instaurar o processo de julgamento, não exigindo a Constituição quórum qualificado, visto que não poderá o Senado deixar de instaurar o processo, o mesmo ocorrendo com eventual condenação”.7 Adverte, ainda, que “apenas esta interpretação pode justificar a menção, pelo constituinte, a duas “instaurações” de processos”, uma na Câmara e outra no Senado”, vindo a acrescentar que “tal interpretação não torna ilógica e iníqua a interpretação do constituinte”.8

O acórdão do Supremo Tribunal Federal deu guarida, não só à interpretação que conduz ao absurdo, como também reescreveu as regras constitucionais, para lhes ofertar diverso entendimento, na senhoria de um inqualificável ativismo judicial, com todas as vênias possíveis aos ilustres ministros.

7. Em alguns votos da maioria, falou-se em dar supremacia ao rito estabelecido no impeachment do ex-presidente Collor. Aliás, tal circunstância foi enfatizada no voto divergente, bem como naquele proferido pelo ilustre ministro Luiz Fux.

Na pesquisa que empreendi, sobre o precedente impeachment do ex-presidente Collor, colhi os seguintes elementos:

(I) – a denúncia dirigida à Câmara dos Deputados, por crime de responsabilidade foi formulada pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB);

(II) – recepcionada pelo Presidente da Câmara (Deputado Ibsen Pinheiro), foi encaminhada à Comissão Especial, cujos membros foram eleitos pelo Plenário;

(III) – observados os trâmites exigidos pela Lei n. 1079/1950, assegurado o direito de defesa, o Plenário, por votação nominal superior aos dois terços exigidos pela Constituição, admitiu a acusação;

(IV) – prontamente o Presidente da Câmara oficiou à Presidência do Senado Federal, dando conta que a acusação havia sido admitida e encaminhando todos os documentos que se encontravam naquela Casa Legislativa (ofício n. 1388/92, de 30.9.1992);

(V) – o Presidente do Senado acusou o recebimento do ofício e comunicou ter sido dado início ao processo de julgamento do Presidente da República pelo crime de responsabilidade (ofício n. 302/92, de 1.10.1992);

(VI) – o Presidente do Senado, pelo ofício n. 190/92, de 2.10.1992, comunicou ao ex-Presidente Collor a instauração do processo de julgamento naquela Casa e que, a partir daquela data, se encontrava suspenso do exercício do cargo de Presidente da República.

Por esses elementos, verifica-se não ter havido, um novo juízo de admissibilidade da acusação por parte do presidente do Senado Federal.

Continuei a pesquisa e no “Diário do Congresso Nacional”, em edição da época, verifiquei constar a publicação de alguns itens referentes ao rito procedimental do impeachment no Senado Federal. Entre eles consta o item 5º com a seguinte redação:

“5. Parecer da Comissão Especial a ser emitido, no prazo de 15 dias, versando o conhecimento ou não, da denúncia popular. Possibilidade de a Comissão proceder, durante o prazo de 10 dias, às diligências que julgar necessárias (Lei n. 1079/50, art. 45, segunda parte).”

Pois bem, o item transcrito faz referência expressa ao art. 45 da lei 1.079/50, que se encontra no Capítulo referente ao processo e julgamento no Senado Federal dos ministros do Supremo Tribunal Federal, por crime de responsabilidade.

Como o processo de impeachment contra os ministros do Supremo Tribunal Federal tem o seu início e posterior julgamento no âmbito exclusivo do Senado Federal, dúvida não há sobre a aplicação do art. 45 da lei 1.079/50 a essa modalidade de impeachment e que assim dispõe: “A Comissão a que alude o artigo anterior, reunir-se-á dentro de 48 horas e, depois de eleger o seu presidente e relator, emitirá parecer no prazo de 10 dias sobre se a denúncia deve ser ou não julgada objeto de deliberação. Dentro desse período poderá a Comissão proceder às diligências que julgar necessárias”.

Ora, o processo e julgamento do impeachment contra o Presidente da República encontra-se pautado em título outro da lei, qual seja aquele referente ao processo e julgamento do Presidente da República e ministros de Estado (arts. 14 a 38).

Em lamentável equívoco incorreu o redator da regra. Equívoco este que nenhum dos ministros integrantes da maioria teve o cuidado de reconhecer, ou não quis, deliberadamente, fazê-lo, com todo o respeito possível.

8. Passamos ao exame do segundo tema que conseguiu a aprovação por seis votos a cinco, qual seja o referente à eleição por voto nominal secreto dos integrantes da Comissão Especial da Câmara dos Deputados.

A discussão teve início a partir do voto do ministro Barroso, afirmando não ter encontrado no Regimento Interno da Câmara, qualquer dispositivo que previsse a eleição das Comissões Permanentes e Temporárias por votação secreta. De forma oportuna, o ministro Teori alertou sobre a existência do art. 188, inciso III, do Regimento Interno e deu início à leitura do dispositivo. Antes de terminar a leitura, o ministro Barroso interferiu para ler o dispositivo e o fez da seguinte forma:

“Artigo I88. A votação por escrutínio secreto far-se-á pelo sistema eletrônico, nos termos do artigo precedente, apurando-se apenas os nomes dos votantes e o resultado final nos seguintes casos:

(…)

III – para a eleição do Presidente e demais membros da Mesa Diretora, do Presidente e Vice-Presidente de Comissões Permanentes e Temporárias, dos membros da Câmara que irão compor a Comissão Representativa do Congresso Nacional e dos dois cidadãos que irão integrar o Conselho da República.”

Interrompeu a leitura nesse ponto e OMITIU a PARTE FINAL do dispositivo:

“E NAS DEMAIS ELEIÇÕES”.

Foi a primeira vez, em 53 anos de minha vida profissional, que assisti um ilustre ministro da Suprema Corte OMITIR, propositadamente, a leitura INTEGRAL de um dispositivo para não lançar por terra o argumento por ele defendido. Um único brado é possível: é de estarrecer.

Não se pode olvidar no pormenor que, tanto a doutrina como a jurisprudência majoritária entendem ser o regimento interno das Casas do Congresso Nacional, lei em sentido material.

Logo, se a eleição pelo escrutínio secreto dos membros da Comissão Especial tem respaldo em norma regimental expressa, jamais e em tempo algum, poderia o Poder Judiciário, invadido esfera própria do Poder Legislativo, considerá-la ilegal ou ilegítima.

Nada mais abusivo do que invadir-se esfera própria e privativa do Poder Legislativo, em tema concernente a atos “interna corporis” de cada uma de suas Casas. Os votos que formaram a maioria deram enorme importância ao “princípio republicano da transparência”, mas nenhum realce foi dado ao princípio estrutural do Estado brasileiro, qual seja o da divisão e harmonia dos Poderes (art. 2º, da CF).

Aliás, não se pode deixar de mencionar a magistral lição do notável Pimenta Bueno – o maior publicista brasileiro do século XIX: “A divisão dos Poderes não é certamente instituída para gerar o choque e o conflito; não se distinguem para que sejam rivais ou hostis, sim para melhor garantirem o destino e o fim social, para que em justo equilíbrio trabalhem e cooperem, auxiliem-se e conspirem pelo modo mais esclarecido em prol do bem comum”.9

9. Finalmente, impedir-se a candidatura avulsa de Deputado para integrar a Comissão Especial, os votos dos ilustres ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli trouxeram ao debate importantes circunstâncias para demonstrar a desarrazoada decisão proferida pela maioria. A uma, porque rompe com a velha tradição do Parlamento brasileiro em admitir nas eleições realizadas nas Casas Legislativas, a candidatura avulsa;10 a duas, porque a lei fala em eleição dos membros da Comissão Especial e não em indicação por parte dos partidos ou blocos parlamentares. A três, se a Câmara possui 513 deputados que podem, em tese, ser eleitos membros das Comissões, outorgar a 26 líderes de partidos a elaboração de listas de indicação, representa um duro golpe à soberania popular que a Câmara representa, constitucionalmente. A quatro, porque aceita a decisão adotada, a Câmara passará a ser refém da ditadura dos partidos políticos e dos blocos parlamentares, com o possível surgimento da anomia, isto é de uma liberdade sem sentido; uma liberdade de escolha, sem escolhas que façam sentido, aumentando os distúrbios, a dúvida, e as incertezas de tudo.

10. A séria advertência feita pelo eminente ministro Gilmar Mendes, transcrita no início deste artigo, infelizmente, não foi ouvida, apesar de retratar de forma flagrante o que acabou acontecendo no julgamento da ADPF 378.

A esperança é virtude essencial na vida humana e nunca poderá deixar de guiar o nosso caminhar nesse mundo de Deus… Bem por isso, termino com a transcrição de trecho de discurso pronunciado na Câmara pelo eminente e saudoso deputado mineiro Oscar Dias Correia, depois ministro do Supremo Tribunal Federal e ministro da Justiça, conforme vem citado em voto proferido pelo excelso e inesquecível ministro Ribeiro da Costa:

“O Supremo Tribunal Federal não faltará ao Brasil de ontem e ao Brasil do amanhã, salvando o triste, o decepcionado, o vilipendiado Brasil de hoje”.

A atualidade da citação é de uma obviedade ululante.

Se tal não se fez presente, agora, sempre haverá tempo de esperar!

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